Da arte de pescar nas pedras, com sapatos mocassim com sola de couro
Depois de abandonar a zona oeste, naquela sucessão penosa – Realengo, Campo Grande, às vezes Santa Cruz e finalmente Itaguaí - o trem passava a margear o mar, numa linha que, na Europa, seria extremamente turística mas, aqui, já deve ter sido abandonada.
Parecia entrar em um outro mundo.
Seguíamos para Ibicuí, que fica no mesmo circuito de Itacuruçá, Muriqui (onde eu quase morri atropelado por este mesmo trem, naquela ponte sinistra, uma semana antes das aulas começarem em 1964) e termina em Mangaratiba.
Nosso objetivo era Ibicuí, logo antes da casa da família Bretas, em Silva Rego, e perto daquela casa que mais parecia um disco voador pousado numa pedra, à beira mar.
A ideia era baixar com essa patota na casa da família da Ana Amélia que , se não me engano, foi conosco no fim de semana, e depois ficar uns dias sozinhos na cidade, aproveitando a praia. Como tínhamos horário integral no colégio, nossas férias começavam antes das outras escolas e a cidade de veraneio estava convenientemente deserta.
Quando nos pegamos sozinhos naquela casa (e na cidade !), começamos a ter consciência do começo de um tempo novo e bem diferente. Estávamos invariavelmente crescendo, tendo mais autonomia, descobrindo as coisas. E tínhamos que nos adaptar rapidamente.
Tentando organizar o pandemônio inicial gerado por aquela galera solta, logo descobrimos que a casa estava sem eletricidade. Nada que uma busca na vizinhança e o empréstimo de um fusível num quadro de luz da casa em frente não resolvesse!
Sim, naquele tempo e naquele tipo de rede elétrica a queima de fusíveis era rotina. E não havia os quadros com disjuntores automáticos de hoje. Eram fusíveis e chaves de encaixar.
Operações simples como lavar a louça do almoço de domingo viravam projetos complexos, com disputas para ver quem lavava o que ! Nunca vou esquecer a cena do Varapa segurando um prato sujo com a ponta dos dedos, delicadamente derramando água fervente de uma chaleira para lavar o feijão grudado. Foi devidamente triturado pelo Ernesto Velha que arrancou o prato e foi lavar com uma esponja, vociferando pra ele parar de palhaçada: “vai acabar com o gás”!
A sensação de estarmos sozinhos, sem adultos nem vizinhos por perto, era inebriante ! Não havia limites para os comportamentos. A linguagem mudou. Palavrões, que naquele tempo eram ditos com educada parcimônia, foram tão incorporados às conversas que o excesso tirou o natural impacto. Nos últimos dias, neologismos foram criados: “vai tomar no pariu!”.
O comércio da cidade, já escasso, nesses tempos fora de temporada era ainda pior. Mas nada que nos impedisse de fazer uma vaquinha e conseguir, numa única birosca aberta, uma garrafa de Drink Dreher para desafiar nossos jovens fígados e alegrar as noites.
E foram ótimas noites de conversas, compartilhamento e descobertas. Do sentido da vida a “Eram os Deuses Astronautas ?” parecia não haver limites pros assuntos nem um pouco triviais.
E ainda com direito a bizarrices como o show de terror do Jochem escondendo um palito de fósforo meio aceso dentro da boca, as veias dos olhos e das bochechas demoniacamente iluminadas e ainda com a apavorante sonoplastia da respiração que, num sorriso sardônico, inflamava o que restava do fósforo ! E havia os campistas raiz que se recusaram a dormir na casa e armaram barraca no quintal, por lá pernoitando.
Lembro-me do Sá e do Jochem.
Enfim, passaram os dias que desfrutamos daquele Woodstock sem sexo, drogas nem rockn’roll. Era só o sentimento de liberdade infinita mesmo…
Infelizmente, por uma desavença com Mr. Fulford, diretor da Cultura Inglesa, eu tinha que voltar um dia antes dos outros pra refazer uma prova que me deram errado.
A programação daquela manhã era uma pescaria. Assim, saí com todo mundo pra estação de trem. Fizeram questão de um bota-fora de respeito. Eu, de roupa de viagem, calça comprida, sapatos de couro, bem chateado e louco pra desistir de voltar pro Rio. Eles, prontos para aventura. Acho que o Marcio era quem entendia de
pescarias. Mas ele estava lá? Chegamos à estação vazia só pra descobrir que o trem, naquele dia, iria passar duas horas depois. Resultado, fui pescar !
Se encarapitar numa pedra com aquela roupa era, em si, uma aventura. Se manter lá em cima, um teste de habilidade. Usava um heroico latonete, que vinha a ser um molinete caseiro feito com uma lata onde se enrolava a linha de pescar e que tinha um pedaço de pau pregado no centro, para o manuseio. O pior é que, depois de um tempo, quase fui parar dentro d´água com um puxão na linha ! Peguei um incrível cação-viola, um peixe estranho que mais parece uma raia ! E não se pescou mais nada. Na volta à casa, ninguém teve coragem de soltar o anzol da boca do bicho, dados os dentes ameaçadores.
Triunfante, larguei o problema para eles e voltei pra estação ferroviária. As duas horas da viagem à frente, com o inevitável retorno às estações de subúrbio sem nenhum glamour, serviram pra pensar no novo tempo que chegava. Logo seria o segundo grau, o Super Aluno, o vestibular, a universidade, a inexorável vinda pra Brasília.
Jamais seríamos os mesmos….
Ivan Simas
23/12/2024