O bonde - uma história vivida
Era o segundo semestre de 1964. Aqueles garotos de 12 anos, como de hábito, depois das aulas no Colégio de Aplicação da UEG saiam pela rua do Bispo, atravessavam a rua Haddock Lobo, passavam em frente à igreja dos Capuchinhos e mais a frente chegavam ao ponto do bonde.
O bonde vinha do centro da cidade e ia em direção ao Grajaú, onde muitos de nós morávamos. No centro, subiam os garotos do Colégio Pedro II. Ali no “nosso” ponto, subíamos nós e os alunos do Colégio Lafaiete.
O bonde tinha dois vagões, o da frente – a máquina – e o de trás – o reboque. Era este último que os estudantes escolhiam para viajar.
Aquele dia parecia ser um dia igual a tantos outros. O bonde 68 chegou, subimos antes dele parar no ponto e nos alojamos nos bancos. Subir no bonde andando era a façanha do momento.
O bonde continuou viagem. Depois da rua Haddock Lobo ele seguia pela Conde de Bonfim, virava na rua Uruguai e mais na frente, virava na rua Barão de Mesquita. Até aí, o percurso era plano.
Ao virar na Barão de Mesquita, havia uma leve subida até chegar na Praça Sachet, onde o bonde fazia uma parada para que o motorneiro e o trocador fossem substituídos por uma nova dupla que conduzia o bonde a partir daí. Eles ficavam num bar na esquina das ruas Barão de Mesquita e rua Agenor Moreira como mostram a foto a seguir.
Durante a viagem percebemos que algo diferente estava acontecendo naquele dia. Nós, do Colégio de Aplicação e os garotos do Lafaiete estavam, como de hábito, no reboque, mas os que pegavam o bonde o centro estavam no vagão da frente muito alvoroçados. Mas foi só o que inicialmente observamos.
A viagem transcorreu normalmente até a parada na Praça Sachet. Chegando lá, o bonde parou, o maquinista e o trocador foram substituídos e o bonde começou a seguir viagem. Quando o bonde arrancou veio a surpresa.
O vagão da frente foi e o vagão de trás, onde estávamos, ficou. Percebemos então o porquê daquela turma ter escolhido o vagão da frente naquele dia. “Alguém” tirou o pino de conexão entre os dois vagões.
E o nosso vagão (o reboque) não ficou parado. Começou, vagarosamente a andar para trás, por causa do declive. A velocidade ia muito lentamente aumentando.
Quando o trocador percebeu o que estava acontecendo, avisou ao motorneiro, desceu do vagão da frente e veio correndo pela rua em direção ao reboque. O motorneiro, no vagão da frente, parou o bonde. O trocador continuava correndo até alcançar o vagão onde estávamos. Já com o coração saindo pela boca, conseguiu chegar ao reboque. Pulou para dentro e tratou de acionar uma grande roda que ficava à frente do primeiro banco.
Foi aí que eu percebi a sua finalidade.
Era para frear o vagão.
Freado o vagão, a cena era a seguinte: quem estava no reboque ficou aliviado - vagão da frente estava parado, e o reboque também, só que uns trezentos metros atrás.
Aos poucos os passageiros foram descendo dos dois vagões para ver o que estava acontecendo. A rua ficou cheia de gente e o trânsito parou.
Poucos minutos depois, encosta um fusca no meio da “multidão”. Era uma das mães. “O Toninho está aí?”, perguntou. Dissemos que não. Ele tinha vindo em outro bonde. Ela então nos ofereceu carona até o Grajaú, para onde ela estava indo. Os quatro garotos entraram no fusquinha. Quando ela ia arrancando bem devagar pois estava no meio da “multidão”, o motorneiro se debruça na janela da motorista e proferiu aquela que seria a frase que lembramos até hoje:
“Muito bonito. A senhora dando fuga a autores de tamanha façanha”.
Explicamos que não tínhamos sido os autores daquela, mas ele não se convenceu, e seguimos viagem...
Essa foi uma ótima época para todos nós. Pena que os bondes, nessas alturas, já estavam sendo desativados.
A CTC (Companhia de Transportes Coletivos) do Estado da Guanabara, absorveu todas as linhas de bonde existentes e começou a eliminá-las do Centro da cidade e da Zona Norte. Além disso, fechou a linha da Ilha do Governador em 10 de abril de 1965, as linhas de Jacarepaguá em 10 de janeiro de 1966 e todo o sistema de Campo Grande em 31 de outubro de 1967. As únicas linhas de bonde remanescentes após esta época foram as de Santa Teresa e uma linha isolada entre a Tijuca e o Alto da Boa Vista – que tinha sido a primeira linha elétrica 75 anos antes.
Nos últimos dois anos de Carlos Lacerda como governador do estado (1964 e 1965), o sistema de bondes do Rio, que já fora considerado pioneiro e um dos maiores do mundo, foi totalmente desativado.
Quase todas as máquinas e reboques foram queimadas e a sucata de metal vendida a peso. Cada veículo incinerado rendia, em média, duas toneladas de ferro e 800 quilos de cobre. Dos bancos e da estrutura interna de madeira (peroba do campo) nada sobrava...
Ao saber do massacre, um grupo de americanos entusiastas dos transportes sobre trilhos decidiu que algo deveria ser feito. Nos Estados Unidos, os arejados modelos com laterais abertas (chamados por lá de “Narragansett”, “breezers” ou “summer cars”) eram considerados relíquias que precisavam ser preservadas.
Esses bondes, que ainda rodavam pelo Rio na década de 1960, tinham parte mecânica e elétrica de origem americana, fabricadas por empresas como a J. G. Brill nos anos 1910 e 1920. Apenas suas “carrocerias”, digamos, eram feitas aqui, pelas próprias empresas que operavam os veículos.
Veja aqui o vídeo "Antigos bondes do Rio de Janeiro rodam nos Estados Unidos
O bonde (português brasileiro) ou elétrico (português europeu), tramway ou tranvia (ou, ainda, trólebus quando se move sobre rodas com pneus) é um meio de transporte público tradicional em grandes cidades da Europa como Budapest, Praga, Varsóvia, Basileia, Zurique, Barcelona, Lisboa e Porto, ou das Américas, como São Francisco e Toronto. No Rio de Janeiro, é chamado de VLT.
Hoje em dia, por razões de economia de energia e de preservação do meio ambiente, sua utilização encontra-se em expansão em várias cidades do mundo. Os bondes têm grandes vantagens em relação aos ônibus, entre as quais a menor poluição, tanto sonora quanto atmosférica; melhor organização do trânsito; transportam até quatro vezes mais pessoas que os ônibus e podem custar para o passageiro até metade do preço do metrô. Complementarmente, a subsistência dos antigos elétricos representa um enriquecimento cultural de várias cidades, já que cada uma introduziu modificações características em suas respectivas redes e mantém os antigos bondes em pleno funcionamento até os dias de hoje.
Um ótimo exemplo do uso inteligente dos meios de transporte coletivo é o Toronto Transit Commission. O sistema de transporte público administrado pelo TTC, que inclui linhas de ônibus, bondes e metrô, é o terceiro mais movimentado da América do Norte, atrás apenas dos sistemas de transporte público de Nova Iorque e da Cidade do México.
Pádua
Budapest
Lisboa
Barcelona
Praga
Medellin
São Francisco
Rio de Janeiro
Toronto
Melbourne
Grenoble
Lille
Londres
Zurick
Casablanca
Istambul
Fontes: Arquivo Geral do Rio de Janeiro, O Globo, Portal Memória Brasileira, AENFER, TRAMZ, Senado Federal
Luiz Claudio, 23/03/2021